As transformações necessárias para se chegar a uma economia mais sustentável e de baixo carbono passam pela adoção de medidas que levem a esse objetivo. A implantação dessas providências, no entanto, depende, na maioria dos casos, de financiamento. E o setor agropecuário já tem hoje à sua disposição uma gama de instrumentos para ajudar nessa passagem. Entre eles, se destacam os títulos verdes (chamados de green bonds), que são títulos de dívida tradicionais atrelados a projetos de transição energética ou sustentabilidade; as Cédulas de Produto Rural (CPR) Verde, instrumento de pagamento por serviços ambientais relacionados à conservação de florestas e biomas no campo; e até a possibilidade de geração de créditos de carbono, ligados a projetos de absorção de gases poluentes da atmosfera com a preservação e restauração de matas nativas.
Para José Pugas, sócio e head de ESG da gestora de investimentos JGP, os sistemas agroflorestais passaram a ser ‘investíveis’, o que não era tão comum anos atrás. “Isso é interessante para o mercado”, afirma. Nesse cenário, conta muito o interesse de empresas em busca da compensação de suas emissões de gases do efeito estufa, por meio da compra de créditos e títulos. Um mercado em que a posição do Brasil atrai internacionalmente. “Na COP 27, foi dito que a recuperação do uso do solo é 30% da solução [para a redução das emissões de carbono] e mais de 50% do desmatamento está localizado no Brasil. Aqui, a transição é muito mais apoiada no uso do solo”, diz. E isso pode atrair investimentos para projetos ambientalmente sustentáveis.
Em setembro, o Parlamento Europeu aprovou uma lei que impede a importação para o bloco de produtos provenientes de áreas com desmatamento A decisão pode afetar o agronegócio brasileiro, que hoje exporta, por exemplo, óleo de palma, soja, café, cacau, gado e madeira, entre outros. Uma das medidas estipuladas na nova lei é a necessidade de rastrear os produtos da fonte (semente) até o destino final (colheita) e fornecer a geolocalização da área de produção do item comercializado. Com isso, os especialistas apontam que, aqui no Brasil, a medida pode fortalecer a busca por financiamento para ações que contemplem a preservação de florestas, por exemplo.
Rafaela Parra, sócia da Arauz Advogados, lembra que União Europeia (UE), China, Estados Unidos e Reino Unido, entre outros países, já exigem uma série de qualificações para que os produtos nacionais possam ser comercializados em seus territórios. “Como somos um país exportador de commodities agrícolas, olhamos para essas exigências ambientais que nos são impostas pelo mercado e pela nossa legislação”, diz.
A tendência, portanto, é tomar mais medidas para continuar garantindo a exportação dos produtos brasileiros que vêm do campo. E, nesse aspecto, o ‘financiamento verde’ pode ajudar. Pugas, da JGP, avalia que o mercado financeiro tem “mudado muito”, especialmente nos últimos três anos, quando começou um aperto fiscal maior, com aumento de taxas de juros e restrições ao crédito. Aí, foi necessário se reinventar. “A mudança do Plano Safra e da postura do governo atual, de querer que o mercado de capitais entre mais forte nas operações de crédito para o agro, mudou o perfil que tínhamos do agro nacional. Há um modelo diferenciado de financiamento.” O Plano Safra é um programa do governo federal, que concede crédito a pequenos e médios produtores.
“Há mecanismos legais criados para que se possa trazer e reter esses investimentos no Brasil. Mas há necessidade de avaliar qual é o mais adequado”, diz Parra, advogada do Arauz. “Título verde? Vai depender, caso a caso, do que for mais benéfico do ponto de vista fiscal, do próprio recurso de valores”, reforça a advogada.
Conheça alguns desses instrumentos:
Créditos de carbono
Surgiram a partir do Protocolo de Kyoto, em 1997, e têm como objetivo contribuir para a redução das emissões de dióxido de carbono dos países. Mas foi a partir do Acordo de Paris, em 2015, que o mercado de carbono ganhou fôlego também no mundo corporativo, em especial na União Europeia. O que é comercializado são títulos voltados à fixação do carbono, pois a cada tonelada de CO² não emitida, gera-se um crédito de carbono, contribuindo para a diminuição do efeito estufa.
Pode envolver projetos de redução dos níveis de desmatamento e de preservação ambiental e florestal e utilização de fontes de energia alternativa, entre outros. No Brasil, o mercado ainda não é regulado, no sentido de que empresas ou setores da economia tenham metas obrigatórias a cumprir. O que prevalece é o mercado voluntário, em que grandes empresas estabelecem metas de emissão e aí compram créditos de CO² para bater essa meta. Neste caso, os créditos gerados precisam passar por uma auditoria feita por uma entidade independente e não são contados nas metas de redução de emissões de países no Acordo de Paris. Nele, qualquer empresa, pessoa, ONG ou governo pode gerar ou comprar créditos de carbono voluntários. No entanto, o alto custo da operação restringe o alcance para grandes empresas, segundo os especialistas.
“A ideia é que em algum momento tenhamos a regulação que obrigue e limite efetivamente a emissão de carbono para cada setor da economia. E aí todas empresas precisarão se adequar, ou emitindo menos ou comprando créditos”, diz Celso Contin, sócio do Vieira Rezende Advogado, referindo-se ao mercado regulado. A regulação geralmente é feita elencando setores específicos que terão definidas suas metas de emissões.
De acordo com ele, o crédito de carbono é um instrumento “antigo”, mas vem ganhando tração nos últimos anos. E cita que o país tem feito algumas regulamentações nesse sentido, como a criação do Sistema Nacional de Redução de Emissões (Sinare), por meio do Decreto 11.075 deste ano, que dá as bases para o mercado de carbono regulado no Brasil.
Estima-se que o mercado de crédito de carbono voluntário movimentou, em 2021, cerca de US$ 25 milhões no Brasil, o equivalente a 17 milhões de toneladas de carbono capturados e convertidos em crédito, de acordo com a consultoria McKinsey. No mesmo ano, o mercado global de crédito de carbono gerou US$ 1 bilhão em transações.
Enquanto a regulação não vem, o mercado voluntário ganhou apoio oficial: em novembro, durante a COP 27, foi anunciado o lançamento do programa BNDES Créditos de Carbono. De acordo com o banco, serão aplicados recursos na comercialização dos créditos por intermédio de projetos que gerem redução de emissão ou captura de carbono. A escolha se dará por meio de chamadas públicas. Esse instrumento, porém, não privilegia o pequeno produtor, de acordo com Contin, em razão dos altos custos que envolvem o seu desenvolvimento, como a contratação de uma empresa para “desenhar” o projeto e o valor a ser pago a uma certificadora, entre outros custos.
“No terceiro trimestre deste ano, 16% dos títulos emitidos no mundo foram créditos verdes. É o maior share histórico”
José Pugas, sócio e head de ESG da gestora de investimentos JGP
Títulos verdes
Também conhecidos como green bonds, os títulos verdes são títulos de dívida privada, que ganham o selo verde e os recursos obtidos devem ser destinados a projetos considerados sustentáveis. E o emissor se compromete a tornar transparente o uso dos recursos nesses projetos verdes, que são assim considerados após receberem avaliação e chancela externa. “Qualquer tipo de operação, como por exemplo uma nota promissória, uma debênture, um Certificado de Recebíveis do Agronegócio (CRA) pode ter esse selo verde. Isso explica o grande sucesso desse ativo”, afirma Contin.
Trata-se de um mercado já bem conhecido no exterior e que vem apresentando crescimento, em nível global, nos últimos três anos. “No terceiro trimestre deste ano, 16% dos títulos emitidos no mundo foram créditos verdes. É o maior share histórico”, afirma Pugas, da JGP. Ele alega que os títulos ESG são um capital “muito resiliente” e sofreram uma queda menor à registrada no mercado global de títulos. “Vimos um aumento de capital disponível para as finanças sustentáveis aplicadas ao uso do solo”, reforça o executivo.
No capítulo ‘ESG no agronegócio e o protagonismo dos green bonds e do mercado de carbono como resposta ao cisne verde’, do livro “Direito Aplicado ao Agronegócio”, com textos de vários autores, Rafaela Parra cita que o Brasil é o maior emissor de títulos verdes relacionados ao uso do solo na América Latina e Caribe, somando US$ 4,3 bilhões em 17 transações.
No entanto, o custo também pode ser um entrave para essas operações. “A empresa precisa ter um certo tamanho, porque essas emissões são custosas. Há o banco que estrutura, o agente fiduciário, às vezes há a securitizadora, além dos custos de advogados e custos de registro. São emissões que requerem um certo capital. Não se emite um título desses com valor inferior a R$ 30 milhões ou R$ 50 milhões, geralmente. Há até emissões de bilhão de reais”, afirma Contin, do escritório Vieira Rezende.
A sucroalcooleira Jalles, antiga Jalles Machado, levantou R$ 451 milhões com a emissão de debêntures verdes para a renovação de canavial em duas séries, com vencimentos de sete e dez anos. A operação, no entanto, não trouxe ganhos financeiros para a empresa, que tem sede em Goianésia (GO). “Não conseguimos tangibilizar isso de forma objetiva, mas é uma coisa que tende a acontecer”, diz Rodrigo Penna de Siqueira, diretor financeiro e de relações com investidores. Para quem atua nesse mercado, o diferencial dos títulos verdes não está em obter recursos mais baratos, mas sim em indicar a possibilidade de se fazer aplicações em projetos socioambientais economicamente viáveis e responsáveis.
Embora a empresa não tenha conseguido taxas de juros mais baixas em relação às normalmente praticadas pelo mercado, o executivo afirma que a adoção desse instrumento mostra para investidores que a Jalles é responsável do ponto de vista ambiental e social, e que isso é importante para a sociedade. Mas admite: “A debênture verde pode acessar mais bolsos”, afirma, se referindo a investidores que buscam papéis verdes.
“Acredito que no próximo ano vamos ter um aumento dos títulos de dívida verde entre os títulos que vão ser negociados com produtores, via revendas, via bancos”, diz Pugas. Também deve movimentar esse mercado o fato de que uma quantidade grande de carbon offset, ou seja, de neutralização de carbono no inventário de bancos, inclusive brasileiros, está sendo considerada greenwashing, porque é carbono de baixa qualidade. “Então, devemos ter um aumento da pressão dos bancos sobre os produtores para que tenham a produção de carbono de qualidade, para que as compensações sejam menos representativas no seus inventários E projetos envolvendo uso do solo e preservação são mais valorizados.
A Tobasa Bioindustral, de Tocantins, pioneira no processamento integral do coco de babaçu, levantou R$ 32 milhões, em outubro, com a emissão inédita de um Certificado de Recebíveis do Agronegócio (CRA) Verde, o primeiro do país voltado à bioeconomia e ao extrativismo sustentável de floresta nativa. O título tem prazo de cinco anos, com juros mensais e amortização do principal a partir do 30º mês. Cerca de 55% dos recursos serão usados para quitar uma dívida. O restante será investido em tecnologias na indústria e como capital de giro para pagar os fornecedores que atuam em um raio de 300 km da sede em Tocantinópolis (TO), no extremo norte do estado.
Em seu parque industrial de 175 mil m², a Tobasa aproveita integralmente o coco de babaçu extraído de uma área de 150 mil hectares da palmeira em meio a agroflorestas e pastagens. Seu principal produto é o carvão ativado utilizado em filtros de água, mas também produz óleo de babaçu, adubo orgânico, farinha e fibras da planta que são empregadas em outras indústrias como alimentícia, de cosméticos, química e de fitoterápicos. “A operação valoriza economicamente a floresta e ajuda a conservá-la. O objetivo principal é gerar valor econômico para a palmeira, para que ela não precise ser cortada”, disse o diretor-presidente da Tobasa, Edmond Baruque Filho, em recente entrevista ao Valor.
CPR Verde
Este é um título de dívida mais acessível ao pequeno produtor. A Cédula de Produto Rural (CPR) foi criada em 1994. “Funciona como uma promissória, então é um título de crédito, só que o pagamento é feito com a entrega do produto rural [e não em dinheiro]. É, há muitos anos, o instrumento mais utilizado no Brasil para financiar o produtor rural”, afirma o advogado do Vieira Rezende, Contin. E, no ano passado, o Decreto 10.828, criou oficialmente a CPR Verde.
De acordo com a regulamentação, uma CPR para ser considerada verde, é preciso que a operação esteja vinculada a um dos requisitos ambientais – redução da emissão de gases, manutenção de carbono florestal, redução de desmatamento, conservação de biodiversidade, do solo ou de recursos hídricos, ou outros benefícios ecossistêmicos – e ter uma certificação externa.
É uma forma mais eficiente para o pequeno produtor se financiar, obedecendo critérios de sustentabilidade”
Celso Contin, sócio do Vieira Rezende Advogados
“Com isso, o comprador do produto, que é quem financia o produtor, pode pegar essa CPR verde e utilizar como lastro para o seu endividamento, pode mostrar ao mercado que só compra de produtores certificados por meio de CPR verde. É uma forma mais eficiente para o pequeno produtor se financiar, obedecendo critérios de sustentabilidade”, afirma Contin.
Na conta a favor da CPR verde, pesa positivamente ser a CPR o título de crédito mais utilizado no agronegócio brasileiro, amplamente conhecido, e registrado em entidade autorizada pelo Banco Central, o que pode facilitar o acesso e entendimento a respeito do agricultor.
Além de gerar uma renda extra para o produtor rural e incentivar operações de natureza sustentável, também incentiva a compensação voluntária de emissão de gases de efeito estufa por empresas investidoras, segundo Alexei Bonamin, head da área de Mercado de Capitais no TozziniFreire Advogados. “Para as empresas cuja natureza de suas atividades dificultem a neutralização da sua emissão carbono, o investimento em CPR Verde não só possibilita a compensação ambiental da empresa, como melhora a imagem dessas empresas perante o mercado, apresentando-as como favoráveis a práticas sustentáveis”, afirma.
Bonamin, no entanto, aponta como desvantagem o fato de se tratar de uma nova modalidade de CPR e, por isso, o mercado ainda precisará de um tempo de aprendizado para disseminar o uso da CPR Verde. No entanto, ele a vê como uma tendência no mercado de capitais, já que financiamentos e investimentos privados são considerados fundamentais para garantir a transição para uma economia de mais baixo carbono, regenerativa e circular.
“A CPR-Verde destaca-se como um dos únicos instrumentos financeiros com previsão legal expressa para gerar uma externalidade ambiental positiva. Desta forma, na medida que o uso da CPR Verde seja difundido no mercado, certamente ela será uma dos instrumentos mais utilizados para compensação voluntária de emissão de gases de efeitos estufa relacionado ao agronegócio”, reforça Bonamin.
Fonte: Valor Econômico